sábado, 4 de outubro de 2008

R$ 18,05

A fome que ele sentia aumentava e seu estômago já começava a doer. Também, não era pra menos, emendar um filme no outro sem pensar em ao menos levar uma batata frita ou um pacote de pipocas.

É, ele não gosta de pipocas. Talvez por ter usado aparelho nos dentes por muito tempo, e a pipoca realmente incomodava muito quando grudava no aparelho.

Depois que tirou o aparelho, ele achava que voltaria a comer pipoca, mas não. Quando tirou o aparelho percebeu que realmente não gostava de pipoca. Que não era só a agonia da pipoca grudada no aparelho que o incomodava, mas a casca do milho que às vezes grudava no dente ou até no céu da boca, isso sem contar quando grudava na garganta, aí sim, era um desespero, ele odiava aquela sensação de algo grudado nele. Decidiu então parar de comer pipocas. Não que nunca mais tenha comido pipocas, às vezes ele até ‘beliscava’, comia umas três ou quatro, apenas para sociabilizar, e só.

Acho que por causa desse trauma causado pela casca do milho da pipoca que sempre grudava em alguma parte da sua boca, ele desenvolveu um comportamento de não tolerar nenhum tipo de grude em sua vida. Isso em todas as áreas. É, ele tem verdadeiro pavor de grude, seja ele qual for. Ainda mais se for assim como era o grude da pipoca que bastava comer umas três ou quatro vezes para grudar. Esse tipo de grude que vem depois de comer então ele não suporta. Seja do jeito que for.

Portanto pipoca não é uma coisa que ele lembraria mesmo de levar ao cinema. Seria mais a cara dele levar uma caixa de Bis, ou melhor, várias caixas de Bis. E ele até tinha uma caixa de Bis de chocolate branco dentro da mochila, só que aquela noite ele havia deixado a mochila em casa, o que é um fato totalmente novo, já que quase sempre ele saía com sua mochila. Antes uma mochilinha bem velha, que ele ganhara na sua festa de recepção dos calouros na universidade, a qual logo depois ele abandonou. E agora, uma mochila nova, do Festival de Cinema de Cannes, com vários ‘bolsos estratégicos’ e um design especialmente francês.

Ele amou aquela mochila desde a primeira vez que a viu, num ‘escambo’, e claro que ele ofereceu tudo o que tinha levado, de maior valor, para trocar pela tão desejada mochila, suas três bolinhas massageadoras coloridas, uma verde, uma vermelha e uma azul. A mochila então era sua e ele estava radiante por isso, afinal ele ama a França, sua língua, sua cultura e claro, seu cinema. E é certo também que ele sonha em ir ao Festival de Cannes, não só como espectador, mas como participante, indicado por algum filme que ele venha a fazer.

Sim, ele é ator. Mas não só é ator, como também é roteirista, poeta, escritor, cantor e compositor. E talvez mais alguma coisa que ele ainda nem descobriu ser. É, eu também não sei como ele consegue lidar com tanta coisa ao mesmo tempo, afinal a Arte requer tempo, ela exige dedicação absoluta. É um relacionamento muitas vezes difícil, pois ela o cobra muito. Vive dizendo a ele que precisa de atenção, que precisa de novidade, que não gosta da rotina, que é pra ele se virar, que o quer só pra ela. É difícil sua vida. E quando ele pensa que está tudo bem, que a relação deles está mais tranqüila, ela se divide em tantas outras, e todas cobram ao mesmo tempo. Todas as suas faces são ciumentas, e se ele dá um pouco mais de atenção para uma, e deixa uma outra um pouquinho de lado, essa outra vem cobrar, joga tudo em sua cara e exige a atenção que lhe é devida.

Isso antes o deixava muito confuso, sem saber qual caminho tomar. Às vezes ele queria terminar a relação, com ela e com todas as suas faces. Mas logo viu que era impossível. Que mesmo que ele decidisse terminar a relação, ela não o deixaria em paz, assim como uma ex-mulher que não se conforma com a separação e inferniza a vida do seu ex-marido, ela o seguiria até o fim da sua vida, fiscalizaria o que ele estava fazendo, e sempre ia tentar se meter em tudo o que ele fizesse.

Então ele relaxou. Decidiu assumir essa relação polígama com a Arte e todas as faces que ela queira o apresentar. É, porque ela sempre o surpreende com uma novidade, que nem sempre o agrada, é bem verdade, mas como ele prefere não a contrariar, acaba tentando entender essa nova face que lhe está sendo apresentada, dedicar um tempo igual para ela e seguir nessa relação de amor incondicional.

Sim, porque ele a ama muito e só por isso eu posso compreender tamanha paciência e dedicação.

Acredito ser por esse amor a Arte que ele agüentou emendar um filme no outro, com fome, com sede e sem reclamar em nenhum momento.

Quer dizer, isso até os filmes terminarem, pois quando isso aconteceu seu estômago doía, e ele começou a ficar mal-humorado. Sim, fome e sono o deixam muito mal-humorado. Sono até que ele agüenta um pouco mais, mas fome, melhor nem encostar.

Mas tudo bem, o clima estava bom, apesar do calor, do mormaço de chuva enrustida que abafava o centro da cidade. Sua companheira de filmes era muito animada e inteligente, o que ele admirava muito, e por essas e outras ele agüentou ficar mais uns 15 minutos esperando o táxi que o levaria até o Leblon, onde encontraria amigos e comeria pizza na Guanabara. Exato, comeria, se os seus amigos não estivessem todos cansados e houvessem desistido de ficar e ali, e ainda se eles não tivessem decidido ir para casa, cada um para a sua claro.

Isso poderia tê-lo deixado chateado, mas não. Como bom sagitariano que é, deu um sorriso intenso e espontâneo e disse.

- Vocês já vão? Têm certeza?

Ao que seus amigos responderam:

- Sim. Estou cansada.

- Puxa, e eu trabalho muito cedo.

- Vou de carona.

É certo que eles estavam lá há mais ou menos quatro horas. Mas eles não estavam o esperando somente. Estavam lá juntos se divertindo. E todos já sabiam que ele só chegaria mais tarde, pois estava nessa ‘cinematona’. Mesmo assim, quase todos foram embora. Ficou apenas um colega que ainda estava animado.

Foram então no café da livraria e ele comeu um croissant de salame com queijo que estava delicioso, não sei se por causa da fome que ele estava ou porque realmente estava bom. Na dúvida, prefiro acreditar na segunda opção.

Ele continuou com fome, mas decidiu sair dali, pois percebeu que se ficasse lá, naquele clima de livraria, a tendência era seu colega sentir sono e querer ir embora, e como ele ainda queria ‘bater perna’ pelo baixo Leblon, decidiu encerrar sua conta e resumiu seu gasto em apenas um croissant de salame com queijo que custou R$ 4,30.

Saíram de lá e ele ainda estava com fome. Claro, só tinha gasto R$ 4,30 e queria estar saciado? Impossível. Pelo menos no baixo Leblon. Daí ele decidiu ir a temakeria, comer mini-cubos fritos de salmão com creme cheese. Ele havia experimentado isso uma noite antes.

Sim, ele havia saído uma noite antes com outros amigos animados para ver uma peça que era realizada numa boate e logo em seguida a pista era liberada para que as pessoas dançassem até dizer chega.

Aquela noite foi muito divertida para ele, apesar da peça não ser lá muito boa. É, não era mesmo. Pelo menos ele não gostou muito, apesar de ter achado graça em alguns momentos, não foi nada que o deixou sem ar, ou o fez se atirar naquele mundo fantasioso e tão real que é o teatro.

Pra começar, o texto não lhe agradara muito. Não sabia se porque era ruim mesmo, ou se porque os atores enrolavam muito para dizer, e por vezes pareciam estar improvisando, em algo que não era para ser improvisado, e isso estava claro. Talvez na tentativa de serem o mais natural possível acabavam por improvisar demais e a sensação que ele tinha é de que tinham perdido o ‘fio da meada’.

Na verdade a impressão que ele teve é que os atores tinham muito boa vontade, o que pra ele é muito importante, mas faltava-lhes um pouco mais de técnica. Isso porque ele acredita que a disponibilidade é essencial, o talento é fundamental, mas a técnica é indispensável. E que esse trio faz o sucesso de qualquer espetáculo, mas para isso precisam estar em perfeita sintonia.

Bom, mas isso não foi algo que comprometeu sua noite. Ao término da peça ele desceu para o térreo da boate, onde havia uma outra festa. Havia um cara tocando guitarra e fazendo samplers com sons já gravados. As pessoas do térreo eram mais velhas, o que pra ele era ótimo, pois ele sempre se deu muito bem com pessoas mais velhas. O cara da guitarra tocava rocks antigos e tinha uma voz muito bonita e afinada. Outro cara surgiu e começou a cantar também. Era um homem calvo, dono de uma agência de turismo. Os dois cantores eram muito carismáticos e juntos conquistaram a platéia, formada por amigos dos dois, e ele e seus amigos. Ele então decidiu ficar ali. Encostou no bar e quebrou um jejum de cerveja de alguns meses. É, ele não gosta de cerveja. Não lhe agrada o sabor.

Enquanto tomava a cerveja o cantor perguntou quem cantava na platéia, ele ficou quieto, porém uma de suas amigas falou em alta voz:

- Ele aqui. Ele canta. Canta e canta muito bem. Tem uma voz linda.

Nesse momento ele já procurava qualquer buraco que fosse para enfiar a cabeça, no sentido avestruz da frase. É, ele é tímido, apesar de muitas vezes não parecer, nem um pouco.

Ele tentou desconversar, mas não teve jeito. Foi arrastado para o palco e teve que cantar. O músico o perguntou:

- O que você quer cantar?

- Eu prefiro mpb.

- Hum.

- Vi você tocando só rocks antigos, eu não sei cantar muito esse estilo.

- Tudo bem, pode ser mpb.

- Hum, então diz uma que você saiba tocar.

- Pode ser qualquer uma.

- Pode ser uma do Caetano Veloso.

Ele ama o Caetano Veloso. Apesar de nunca ter ido a um show, nunca tê-lo conhecido, nem sequer tê-lo visto pessoalmente. Ama talvez por ter crescido ouvindo as suas canções, junto com as de Gil, Gal e Bethânia.

Sim, ele é baiano e sua bagagem musical foi totalmente influenciada pelo movimento tropicalista e também por Novos Baianos.

Claro que ele conhece, respeita, entende e gosta de bossa nova e samba, mas para ele, nada se compara ao tempero musical baiano.

- Pode sim, claro. ‘Sampa’?

Respondeu o músico, ao qual ele disse:

- ‘Sampa’ é lenta. Vamos uma mais animada. Que tal ‘Gatas Extraordinárias’?

- Ótimo!

Ele pegou o microfone e um pouco tímido cumprimentou a platéia de forma que a platéia não percebesse sua timidez. Estampou um sorriso meio ‘cara de pau’ no rosto e foi. Deu certo. Ele havia cantado, as pessoas haviam gostado e ele estava inteiro. Digo isso porque sei que ele é tímido para cantar, e tenta criar personagens como faz no teatro. Esse personagem ‘cara de pau’ deu certo.

A noite anterior havia sido uma alegria, apesar da imensa chuva que caía, quase um temporal, ele havia se divertido bastante, o que seria pouco provável para uma noite bastante chuvosa no Rio de Janeiro.

Já essa noite ele estava meio cansado. Seus amigos foram embora, ele estava com fome, mas mesmo assim se divertiu. Conversou com seu colega sobre os filmes que tinha visto, sobre a sua relação com a Arte, contou uma porção de besteiras, piadas e coisas engraçadas, que fizessem seu colega sorrir. Ouviu seu colega falar sobre coisas com e sem importância, mas que eram bastante divertidas, e também sorriu bastante. Comeu seus mini-cubos fritos de salmão com creme cheese regados em muito molho teriyaki, que para ele estavam deliciosos, e dessa vez sem sombra de dúvidas, tomou um refrigerante, pediu a conta e adicionou ao seu gasto daquela noite, mais R$ 13,75.

2 comentários:

Mariana Junqueira disse...

Adoreiiiii! muito mesmo. Foi legal pq eu percebi aos poucos o sentido da história. Parabéns!

Joe Edman disse...

Belo conto cara! Parabéns! Quero ler esse livro!!! Um abração!